João Matvichuc
No meio da madrugada, a chuva fina caia implacável, enlameando a estrada de terra batida, dentro da imensa e monstruosa selva escura. O silêncio das trevas era de vez em quando quebrado pelo ruído de algum animal na vegetação; olhos arregalados espreitavam na escuridão. Seriam fantasmas aterrorizando nossas almas e nos causando inquietação? O canto triste e lúgubre de uma coruja se fazia ouvir em resposta.
Um pequeno carro funerário prosseguia em marcha lenta pela estrada fustigada pela chuva, que enevoava os olhos e a alma, aumentando o temor das pontes de madeira que teria de atravessar – velhas, obsoletas, podres e quase caindo aos pedaços. Retrato fiel do desmazelo e inércia governamental, que se apossou dos municípios brasileiros. Talvez, o culpado de toda essa sem-vergonhice seria apenas um minúsculo e mísero inseto, que adora destruir pontes de madeira – o cupim. Talvez, esta seja a resposta mais cômoda para justificar os desmandos políticos regionais.
O veículo aproximou-se da malfadada ponte, suas rodas dianteiras subiram lentamente nas duas tábuas enlameadas que serviam de trilha para os pneus - uma escorregadela, uma simples deslizada seriam fatais para que o veículo despencasse num precipício escuro e com uma profundidade difícil de ser imaginada. Daí pode-se imaginar como estava o semblante do motorista, inquieto e muito preocupado em atravessar aquela maldita ponte e chegar logo ao seu destino.
Jesualdo praguejava contra a sua própria sorte na vida, pois nunca conseguira estudar e agora ali estava conduzindo o carro funerário da Prefeitura de Burí; cidade pequena do interior paulista, que ainda não possuía um serviço funerário. Ele fora obrigado a viajar até Itapetininga para apanhar um caixão e levá-lo à sua cidade.
Estava voltando e seu único e silencioso companheiro de jornada era aquele imenso e frio caixão mortuário, que vazio, aguardava a chegada do seu "feliz" ocupante.
Jesualdo lembrava de quando era criança, o barulho da chuva batendo no zinco do telhado da casa, propiciando uma estranha música pontilhada de percussões e cadências, que vão direto à alma, concedendo uma sensação de leveza e de muito prazer, principalmente pelo fato de estar bem próximo ao Criador de todas essas belezas. Naquele momento, entretanto, a chuva o irritava, não suportava aquele ruído batendo insistentemente na capota do veículo. Sentia muita inquietação com aquele caixão vazio e a estranha impressão de estar ouvindo um Réquiem Mozarteano, tenebroso e lúgubre, como aquela madrugada fria e chuvosa.
- " Deus do Céu! Que angústia! Não vejo a hora de chegar ao meu destino e me livrar desse caixão. Arre, que não agüento mais ! Não vejo a hora de me aposentar ! ".
Logo adiante, após uma longa e tortuosa curva, surgiu à beira da estrada, um homem solitário, com as roupas encharcadas pela inclemência da chuva, e que acenava freneticamente para que o veículo parasse.
Jesualdo assustou-se com a inesperada aparição, iluminada pelos sucessivos relâmpagos que insistentemente clareavam o céu, não quis se deter, mas como bom samaritano, refletiu por alguns instantes, sentiu compaixão daquela figura e resolveu parar o veículo. O desconhecido aproximou-se de sua janela e lhe disse com voz ofegante.
- " Pelo amor de Deus ! Me dê uma carona, que já estou há horas a espera de uma condução ".
- " Se o senhor não se incomoda de entrar num carro funerário, dou-lhe uma carona, mas tem que ser lá trás", respondeu o velho Jesualdo.
- " Por que ? "
- " Porque sou funcionário municipal e gosto de cumprir com minhas obrigações. Meu chefe proibiu de conduzir pessoas aqui na frente, portanto se quiser vá lá trás...
- " Mas e o morto ? ", perguntou o outro.
- " E daí, morto não faz mal a ninguém (rindo) – Mas não precisa se preocupar, porque o caixão está vazio.".
O caronista não se fez de rogado, entrou rapidamente na traseira do carro e acomodou-se ao lado do caixão. A chuva tinha-lhe encharcado as roupas e a água escorria pelas pernas e tornozelos aumentando o frio. Tremia de bater os dentes. Olhou para o caixão, pensou, pensou mais uma vez e tomou uma decisão.
- " Esse frio tá de amargar, o morto que me desculpe, mas vou ocupar seu lugar por alguns instantes até... até que eu fique mais quente, depois, devolvo-lhe a cama.
Assim pensou, assim procedeu. Abriu a tampa, deu uma rápida olhada e não pode deixar de exclamar:
- " Mas que lindeza ! Todo de seda fina, coisa de muito luxo, de falecido importante. Assim, até dá gosto morrer ! ".
Entrou no caixão e fechou lentamente a tampa, deixando pequeno espaço para respirar. Logo o calor tomou conta do seu corpo e adormeceu com a alma leve embalada pelos cânticos do deus Morfeu.
Jesualdo, distraído com a estrada não percebeu a atitude do caronista, prosseguiu em sua viagem, atento para os perigos, quando surgiu, em outra curva, mais uma novidade – um grupo de pessoas abrigadas embaixo de uma árvore, tentando se abrigar da impiedosa chuva, que lhes molhava todos os ossos e parecia não terminar. Novamente, o velho motorista se deteve e repetiu o mesmo discurso de funcionário zeloso que fizera ao primeiro caronista e os convidou a entrarem na parte traseira do veículo, onde se acomodaram junto ao caixão.
Esqueceu, porém, de avisá-los que lá já havia um outro passageiro e que se acomodassem da melhor maneira possível.
A viagem prosseguiu. Sentados, lateralmente, em torno do caixão, os novos passageiros, respeitosamente, comentavam em voz baixa a respeito de quem seria aquele falecido.
- " Quem será compadre, que aí está ?
- " Sei lá, mas pelo tamanho do caixão deve ser um morto bem grande".
Uma das mulheres comentou:
- " Aqui em nossa terra morre-se muito de morte matada. Vira e mexe, algum desses fazendeiros mata, sem dó e piedade, os coitados dos nossos "sem-terra".
- " Pois num é, comadre ! Os coitados dos mortos são gente moça, que ainda não viveu e acabam morrendo de bala certeira".
O grupo continuou a comentar as prováveis virtudes do falecido, se ele tinha ou não família, talvez filhos pequenos chorando sua ausência. Estavam tão entretidos nesse bate-papo que não notaram que a tampa do caixão foi se levantando lentamente e um sorridente "morto" apareceu e perguntou-lhes:
- " Oi, gente ! Como é, a chuva já passou ? ".
Ninguém respondeu, os olhos saltaram-lhes das órbitas, pânico geral e ninguém teve coragem para dialogar com o ressuscitado e o que se viu em seguida foi um estranho e hilariante espetáculo – pessoas apavoradas gritando, abrindo a porta do veículo e se atirando para fora, tombando e rolando sobre o chão enlameado, endoidecidos pelo medo e correndo em todas as direções à procura de um lugar seguro, longe do fantasma que lhes assombrara. Sumiram na densa mata que margeava a estrada.
- " Gente, o que foi que aconteceu ? perguntou o espantado Jesualdo, olhando estático pelo espelho retrovisor.
O morto caronista sorriu timidamente procurando respostas, que pudessem justificar o inusitado da situação. Após breve reflexão disse:
- " Não sei, não. Parece que viram um fantasma. Esse povo do interior é muito ignorante, acreditam em cada crendice, que até Deus duvida. Pra mim esse pessoal tá doido mesmo, mas deixa eles pra lá, que agora vai ser impossível achá-los nessa escuridão. Vamos em frente companheiro que o morto não pode esperar, não é verdade?
E o negro veículo prosseguiu em sua jornada protegido pelo manto negro da noite, pelo silêncio da mata e pela chuva que, lentamente, foi cessando, dando lugar a uma suave brisa molhada, que levada pelo vento, trazia o frescor da vegetação, numa maravilhosa fotossíntesse da Mãe Natureza e de seus eternos e indesvendáveis mistérios...
NOTA DO AUTOR:
( Dedico este conto à minha saudosa mãe Juliana, que me inspirou escrever esta história ).
Conto premiado com o Primeiro Lugar em Conto de Humor Negro nos XXVII Jogos Florais de Algarve, Portugal, em Dezembro de 2007.
Publicado numa Coletânea do Racal Clube, Silves, Portugal, Páginas 57 a 60
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