*
*

 

 

*   
*
*
*
*

 

      on/off


" O VELHO CAPITÃO" 


(conto) João Matvichuc 


  
        Sentado numa velha e tosca cadeira de madeira, já com o verniz um tanto desgastado pelo tempo, o garoto franzino, com os olhos fundos encovados por uma espectral magreza, espiava com indisfarçável curiosidade o rosto sereno do velho avô, na placidez de quem descansa o sono da Morte, de um corpo imóvel, emoldurado por imponente esquife, negro como as trevas da noite, todo enfeitado com as mais diversas flores, dando um colorido inusitado na rigidez cadavérica transparente em sua mortalha.


   
     A velha viúva Maria chorava silenciosamente, como se o pranto pudesse incomodar as pessoas presentes no velório. Olhou, de relance, para o neto e se surpreendeu com seu olhar fixo no rosto do velho "diéda" (diminutivo carinhoso de avô, em russo).


   
     Como medir o sofrimento de Vânia ante a morte do avô ? Refletiu avó Maria, numa muda indagação. Afinal, Eugênio não foi propriamente um avô de verdade, pois Vânia tinha sido adotado com o casamento do seu filho com Olga, a genitora do menino, mas apesar dos pesares, Vânia gostava muito dele e o considerava como avô verdadeiro. Era indisfarçável seu sofrimento com a inesperada partida.


   
     Talvez, "babuska" (diminutivo carinhoso de avó, em russo) Maria fosse a única a entender os sonhos do neto. Estavam sempre juntos e trocavam muitas confidências. Ele aprendeu com ela a falar e a rezar em polonês, porque como todo polonês que se preze, era muito católica. Ela tinha um curioso passatempo herdado dos tempos em que vivera na Rússia - gostava de tirar a sorte nas cartas do baralho. Excelente cartomante parecia adivinhar o futuro das pessoas.


   
     De certa forma, previu que ele se casaria duas vezes e só depois dos 50 anos de idade, após o segundo casamento, teria uma estabilidade na vida, que optaria pela vida artística e depois pela carreira literária; enfim que se tornaria um homem muito rico. Todas as previsões deram certo, com exceção da última. Vânia até hoje sonha em ficar rico.


   
     O avô Eugênio fora vitima de um fulminante ataque cardíaco, um enfarto do miocárdio, que lhe tirou a vida aos 67 anos de idade. A causa mais provável fora o uso excessivo dos famigerados cigarros, _selfmente nos últimos dois anos, quando ele chegou a fumar mais de duas carteiras diárias, um exagero, a quem pretendia chegar ao centenário da vida, seguindo as tradições genéticas da família. A prova fatal do crime jazia nas manchas entre os dedos amarelados pela nicotina. No momento do enfarto, avô Eugênio ainda segurava seu último cigarro entre os dedos. 

   
   
     Quantas pessoas ainda serão dizimadas por esse impiedoso assassino da humanidade ? Quando nossas autoridades governamentais deixarão de ser tão gananciosas ao permitirem que a indústria cigarreira continue se expandindo cada vez mais, auferindo lucros vultosos, que depois são traduzidos em avantajados percentuais na arrecadação de impostos ? A vida humana não vale mais nada ?


   
     O vil metal é mais importante que a vida ? São reflexões que surgem em nossas mentes, quando um ente querido falece em conseqüência do maldito cigarro, essa praga em forma de vício, difícil de vencer.


   
     Vânia permanecia em silêncio. As pessoas transitavam lentamente pela sala, como se o ruído dos sapatos pudessem incomodar o falecido. O menino lembrava com nitidez as imagens de um sonho, que tivera com o velho avô, na noite anterior. Sonhara que ele aparecera no quarto, mas não chegara a entrar, da porta acenou para o neto um adeus de despedida.  


   
     Contou esse sonho aos seus pais e estes não lhe deram ouvidos, achando que era mais uma de suas inúmeras fantasias. Após insistentes apelos para que fossem todos para a casa do avô, os pais resolveram atender ao pedido do garoto e todos rumaram para lá. E qual não foi a surpresa, quando encontraram o velho estendido sobre a mesa da sala de jantar e a viúva chorando copiosamente. 


   
     O padrasto espantado diante da tétrica cena, não conseguia balbuciar nenhuma palavra, com os sentimentos sufocando o coração e as lágrimas embaçando o olhar. Era visível seu sofrimento diante do corpo do pai.

        O semblante calmo e sereno do falecido, já não transparecia mais a sisudez e as expressões de raiva, perplexidade ou de dor, que o menino tanto conhecera.


   
   Seu pensamento voou até um passado não muito distante, num período em que cursava o primeiro ano do Primário, numa escola estadual paulistana, situada na Vila Zelina. Gostava de recortar figuras das revistas e com elas criar cenários para suas "peças teatrais". Na ausência das revistas, não se fez de rogado, apoderou-se das cartilhas do "bê-a-bá" das outras crianças e... recortou-as todas. Foi um escândalo! O avô Eugênio, no lugar dos pais, teve de comparecer na escola para solucionar o problema, ressarcindo os prejuízos e Vânia voltou pra casa puxado pela orelha.


   
     Certa ocasião, querendo mostrar sua importância para os colegas da escola, quando afirmava que era o único aluno possuidor de um belo relógio de pulso, acabou "emprestando" o relógio do velho e após exibi-lo, por vários dias e receoso de ser apanhado em flagrante, escondeu-o, de tal forma, que nem mesmo ele conseguia achar. O avô Eugênio, desesperado com o sumiço do relógio de estimação (tinha pertencido ao seu pai), passou vários dias procurando e como não o encontrava acabou suspeitando do neto.


   
     Após uma sessão de interrogatório, Vânia confessou que tinha escondido o relógio no meio de uma pilha imensa de tijolos no fundo do quintal. A família passou um dia inteiro procurando no meio de todos aqueles tijolos, até que o menino lembrou de que o tinha colocado embaixo do seu próprio colchão. Novos puxões de orelha e a famosa surra com vara de amoreira, que deixara inesquecíveis marcas arroxeadas no traseiro. Curiosamente, após a morte do avô Eugênio, Vânia, agora adolescente, acabou herdando esse relógio. Talvez, o velho tenha se arrependido de ter dado um castigo tão dolorido no neto. 


   
     Eugênio era um velho lobo do mar. Antigo capitão da Marinha Real russa tsarista (branca) fora um nobre falido, fugitivo da famosa Revolução Russa de 1917, teve muita sorte nessa fuga, pois estava com viagem marcada com destino à França e à Inglaterra. Alertado pelos amigos em terra, que a revolução estava prestes à estourar, não perdeu tempo, reuniu a família e alguns amigos mais chegados e foram para o navio em Petrogrado, onde seus marinheiros já o esperavam, prestes para zarpar.


    
     Deixaram tudo para trás: propriedades, móveis, jóias, dinheiro e tudo o que a nobreza lhes concedera durante toda a vida em solo russo. Fingindo apagar o passado, deixaram uma vida de fausto para trás e resolveram recomeçar outra, em novo país, sem os títulos, o luxo e a riqueza. Enfim, uma vida simples como a de qualquer "mujique" (camponês), na acepção mais simplória da palavra.
O navio partiu levando um bando de marujos deserdados e esperançosos de recomeçar tudo de novo na velha capital inglesa.


   
     A França, simpática à causa tsarista, e considerada uma segunda pátria para os refugiados da antiga monarquia russa (que falavam fluentemente francês), foi evitada, por estar cheia de espiões bolcheviques. Os fugitivos queriam evitar o que estava acontecendo com a maioria dos tsaristas: serem assassinados nos países, onde tinham se refugiado, como foi o caso do líder Trotski, no México.


   
     Chegando ao porto de Liverpool, abandonaram o navio e partiram de trem para Londres. O Capitão Eugênio e seus comandados se desfizeram das roupas militares e passaram a viver e a trabalhar para sobreviverem, nas condições mais humildes. O velho capitão não falava bem o idioma inglês e foi obrigado a trabalhar como lavador de automóveis nas ruas londrinas e depois em serviços pesados na construção civil.


   
     Sua situação melhorou quando, através de outros refugiados russos, conseguiu encontrar uma velha amiga sua, uma condessa russa, que depois se tornou matriarca de uma importante família, que imigrou para o Brasil. Ela lhe proporcionou novos documentos e meios financeiros para imigrar para o nosso país e o mais importante: um emprego, embora simples, para recomeçar a vida. E foi assim que ele, sua família, e a maior parte de seus marujos para cá vieram, em busca de uma nova e melhor realidade de vida.


   
     Esse núcleo imigratório veio mais tarde compor a população russa de vários bairros da Zona Leste paulistana, _selfmente os mais conhecidos, como a Vila Prudente, Vila Zelina, Vila Lúcia, Vila Bela (onde Vânia nasceu) e Vila Alpina, considerados na década de 50, como ponto predileto dos povos eslavos ( russos, poloneses, ucranianos, estônianos, lituanos, etc ).


   
     O velho Capitão Eugênio, ao invés de navios, foi comandar a portaria _self das Indústrias Klabin, em São Paulo.


- "Vamos, meu neto, está na hora do seu avô partir".
Vânia despertou de suas lembranças com a voz da velha  "babuska" Maria, colocando a mão sobre seu ombro. 
A tampa foi colocada, o rosto pálido desapareceu e só se ouvia apenas os soluços entrecortando o ar, e sendo diluídos pela tristeza da partida. Alguns homens levantaram o esquife e começaram a se dirigir na direção da porta da rua. Um inesperado pensamento surgiu na mente do garoto:


- "Por que não enterram o "diéda" no mar ?"


- "Porque aqui em São Paulo não tem mar. Que bobagem é essa menino ?"
Indagou perplexa a mãe.


- "É porque o "Diéda" Eugênio me contou que quando um  marinheiro morre, o corpo dele é jogado ao mar. Acho que o vovô preferia dormir no mar..."


- "É, talvez..... mas.... vamos que já é tarde e o cemitério tem hora para fechar". 
Retrucou o padrasto, segurando uma das alças do caixão.


   
     E a última viagem do velho capitão seguiu à vereda final, para onde quem vai, não retorna jamais. E lá ficou em repouso eterno nos campos santos da Vila Formosa. Aos entes queridos que aqui ficaram só restou a conformação e a saudade com a homenagem deste seu "quase neto", que aqui deixa registrada a sua história. 
 

                                                   

   

(Conto publicado na Seleta de Versos e Prosa, volume 15, pela   Editora Bork – São Luiz Gonzaga – RS – 2001

Páginas 152 a 157)

 

                               

<< Voltar 

 

 

_________________________________________

Indique este Site!

Send for friends!

_________________________________________

site: http://ivanfa.mhx.com.br/