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 " VÔ MARCOS "

(conto)  Ivan Matvichuc

 

         O frio gélido da madrugada deixou-se acalentar pelos primeiros raios de sol, que  se  insinuavam  pelas  frestas  da  velha  janela  de madeira,  já  um tanto corroída  pelo  tempo  implacável, que insensivelmente vai destruindo tudo ao seu redor. Despertados de sua letárgica sonolência os pássaros iniciavam seus gorjeios, voando céleres sobre o cafezal da velha paisagem paranaense, que se estendia até onde a vista permitia alcançar e se confraternizavam com dezenas de borboletas que vinham bulir o néctar das flores e saudavam a Natureza com seus cantos e  evoluções coreográficas.

 

         Debaixo de uma grossa colcha  de  retalhos,  o  jovem  arriscou  um  olhar  preguiçoso para espiar o mundo, que renascia para mais um dia de seu cotidiano. Ele, contudo, não se aventurava em afastar a coberta estendida até o queixo, pois temia que o frio daquela linda  manhã de Junho,  pudesse  afugentar  o  pouco  calor,  que  lhe  corria  nas veias. Apenas ficava preguiçosamente deitado ouvindo os sons que vinham de fora.

 

        Lembrou-se de súbito da viagem que fizera vindo de São Paulo até a pequena cidade de Cianorte, no velho oeste paranaense e, sentiu uma ligeira sensação desagradável ao lembrar-se do que viera fazer ali e uma tristeza invadiu lentamente seu coração. Afinal, aquela manhã não seria igual às outras.          A porta do quarto abriu-se e surgiu o rosto um tanto cansado de uma senhora de cabelos grisalhos, presos ao um coque no alto da cabeça e que caminhou  lentamente em sua direção, sentindo o peso dos anos inexoráveis, mas que ela, obstinadamente, fingia não sentir. - "Dormiu bem, Vânia?" – Indagou ela   buscando  um  sorriso  perdido  no  fundo  da  alma.

 

- “Sim “vó”, dormi bem. Mas que frio faz nessa terra” – Respondeu acompanhando com o olhar a avó,  que  abria  a  enorme  janela  de  madeira, deixando o sol entrar.

 

-         "Aqui  no  Sul  é  sempre  mais  frio no  inverno,  mas  pelo menos vamos       ter um pouco mais  de  calor  nessa  manhã,  mas  levante-se e vá  tomar    um banho para espantar a preguiça.  O  café  está  quase  pronto..."

 

         Sentiu o cheiro delicioso que vinha da cozinha, invadindo-lhe as narinas e mexendo com as entranhas sequiosas por degustar aquela maravilha matutina, o desjejum. São poucos os prazeres da vida, mas tomar um café, que foi colhido, secado ao sol e moído na hora, na velha máquina de moer, era um prazer indescritível, principalmente se o ingerimos acompanhado de um bom pedaço de pão feito em casa, no velho forno de barro e vidro, no fundo do quintal. Pão que dispensava manteiga, pois fora assado com uma forma inteira de queijo branco, dentro da massa. Era só fatiar e comer. Havia também um enorme pote de geléia de tangerina feita com as frutas apanhadas do pomar.   

 

         Enquanto bebia o café, na velha caneca de alumínio, arriscou um olhar de relance na velha avó Maria, que era ainda nova, não alcançara  os  50 anos, mas a dura vida de lavradora já lhe tinha marcado o rosto e envelhecido seus cabelos. Tentou perscrutar sua mente para avaliar se os acontecimentos do dia anterior, tinham abalado as estruturas  da  velha ucraniana,  acostumada com os revezes da vida.  Seu rosto demonstrava toda a amargura e tristeza  de sua alma pela perda de seu companheiro da longas jornadas da vida e que Deus o levara na calada da noite.

 

         Coitado do Vô Marcos ! Por essa, Vânia não esperava. Parece que ele estava adivinhando o que ia acontecer, pois como costumeiramente fazia, todos os anos, vinha de São Paulo passar as férias  com os avós e matar a saudade daquele lugar tão bonito e bucólico. Chegara um dia antes do ocorrido. Vô Marcos, já alquebrantado pela doença, que lhe corroía o corpo e a alma, não saia da cama e esperava, pacientemente, o fim de sua existência terrena, mas ao saber da chegada do neto e movido por uma força sobrenatural, levantou-se e foi se sentar no terraço da varanda, próximo ao jardim. Ali na  solidão de sua velha cadeira de balanço ficou entretido com o canto dos pássaros, esperando por Vânia. - "Só saio daqui quando ele chegar" Disse irritado com os apelos dos   familiares  preocupados  com  seu  estado  físico,  debilitado  pela  insidiosa  doença  ( câncer de próstata ). E assim foi, Vânia chegou, conversaram durante horas e depois satisfeito de ter cumprido sua missão, recolheu-se para morrer. E, aquela noite de velório tinha sido longa. Custava a passar. Na sala, o corpo, a viúva, o neto e os filhos.         

 

         Vânia ainda lembrava das histórias que o Vô Marcos gostava de contar. Costumavam   ficar  na  intimidade  da  cozinha,  entretidos  em  sorver  aquele gostoso café  e passavam horas conversando.  A  conversa  varava  o  tempo e voltava a um passado, não muito remoto, na velha Rússia tsarista, no início do Século XX, onde num pequeno vilarejo chamado Constantinovca, vivia um casal de russos, bem jovens e muito felizes pelo nascimento do primogênito Ivan. Paulo e Maria só podiam agradecer ao Criador por tamanha dádiva. Os tempos, porém, eram de muita guerra, provocada pela vontade férrea do imperador em conquistar novas terras e solidificar o Império Russo. Paulo era um soldado da cavalaria, que servia ao exército czarista – um cossaco, de regimento famoso, que montava em fogosos ginetes, que corriam céleres pelas estepes.  Eram invencíveis. Às vezes, passavam muitos dias, semanas e até  meses combatendo fora e Maria ficava praticamente o tempo todo sozinha,  cuidando da casa e da criança. Seu vizinho, o Vô Marcos de nossa história, solteiro e bem mais jovem, vivia na casa ao lado. Procurava mostrar-se sempre prestimoso e atendia todos os pedidos da jovem senhora e daí nasceu uma grande amizade, com o respeito que os tempos impunham. Vô Marcos detestava a vida militar. Gostava do seu ofício de encanador e no campo  haviam  poucas oportunidades  para  desenvolver  seu trabalho, por isso, pensava em mudar-se para Petrogrado, onde pudesse ser melhor aproveitado. Pensava, pensava e não se mudava. Algo prendia seu coração àquele lugarejo – sua linda vizinha Maria. Ele sabia esperar pacientemente em seu canto.         O seu dia chegaria... E chegou, no início de 1904, quando a Rússia declarou guerra ao Japão e Paulo partiu deixando para trás sua desalentada esposa. Partiu para nunca mais voltar. Encontraram seu cavalo abandonado e ele desapareceu como por encanto naquela imensidão gelada da velha Sibéria, onde o branco da neve se perde na linha do horizonte. Maria chorou muito a perda do marido, que primeiro foi considerado "desaparecido" e após cinco anos  de espera, foi dado como "legalmente morto", oficializando sua condição de viúva.

 

         Confortada pelas sucessivas visitas de Marcos, cedeu aos impulsos amorosos do insistente vizinho, casaram e foram morar em Petrogrado, onde ele finalmente conseguiu trabalho como encanador. Durante a Revolução de 1917, imigraram para o Brasil, em busca de trabalho e melhores condições de vida. Vô Marcos,  como  encanador,  não  encontrou  nenhuma dificuldade para encontrar  trabalho e sustentar  sua querida Maria e o pequeno Ivan, de apenas quatro anos de idade. Vô Marcos recebeu uma boa proposta de trabalho de uma companhia inglesa, que começava a desbravar o noroeste do Paraná. Maria e Ivan, porém, não o acompanharam nesta jornada, pois faleceram, ele em São Paulo em 1941 e ela em Londrina, no início de 1947. Viúvo, Vô Marcos não ficou só por muito tempo, pois conheceu uma outra Maria, jovem ucraniana, que conhecera em Arapongas, vinte anos mais nova que ele e casou-se com ela. Agora, ela estava ali ao lado do caixão do esposo, já sentindo a saudade provocada por  sua inesperada partida. Hoje, Vô Marcos descansa no pequeno cemitério paranaense de Cianorte. Vânia retornou a São Paulo. Quando o velho e esfumaçado trem se afastou da Estação de Maringá, deixou para trás uma enorme nuvem de fumaça branca enevoando uma imensa saudade no coração.  Talvez o reencontro com Vô Marcos não demore a acontecer, mas enquanto isso  não  acontece,  deixo aqui registrado, para a posteridade,  um pouco de sua história.

Seu neto Vânia.

 

(Conto publicado em 2004 na Antologia “Humano, Humano Demais” da

Editora Arnaldo Giraldo de São Paulo, Páginas 81 a 85).

 

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