( Conto ) Fátima Queiroz
Desde que o Governo decretou o
"apagão" ( black-out ) como medida não muito simpática de economia energética, os plantões noturnos de Marieta ( estagiária em enfermagem ) na Santa Casa de Misericórdia se tornaram um caso de misericórdia para a coitada. Isto, porque tinha um terrível ponto fraco: o medo de escuro, ou melhor, o pavor de escuridão. As trevas não faziam o seu gênero.
Ninguém achou estranho, quando a Enfermeira Nilse entrou no Posto de Enfermagem e perfilando-se diante de Marieta, falou em tom categórico:
- Dona Marieta, o defunto do 304 é todo seu !
Afinal, esta era uma frase que ultimamente ela já se acostumara a ouvir, pois de uns tempos pra cá, rotineiramente, em seus plantões noturnos, havia um "pacote" para fazer. Resignada, suspirou e foi cuidar de sua macabra obrigação.
Pegou uns lençóis, uma bandeja com gazes, pinça, bolas de algodão para o tamponamento do corpo, uma faixa de crepe para sustentar o maxilar do rosto do cadáver e lá se foi empurrando a maca com o material para preparar o corpo e transportá-lo ao Necrotério. No caminho ia pensando: Como era difícil o estágio naquele hospital tão pobre, onde faltava material, faltavam funcionários, só não faltavam pacientes e... defuntos.
Imagine, que ela sozinha ( simples estagiária de enfermagem ), era responsável por toda enfermaria masculina daquele andar, sempre lotado com 40 pacientes.
Chegando ao quarto, Marieta olhou para o homem, que na cama parecia estar serenamente dormindo. Coitado ! Era o "seu" Francisco, um infeliz e solitário homem de 48 anos e já com várias internações decorrentes de seu alcoolismo crônico. Há dias fora isolado naquele quarto, aguardando a hora derradeira. No seu prontuário lia-se: Ca - Hepático.
Afinal, a morte para ele fora um grande alívio.
Marieta, com muito esforço e sacrifício (pois era magro, mas pesava), colocou-o sentado, apoiando-o com seu corpo. Mas, mesmo assim não conseguia sustentá-lo e o corpo desabava na cama.
Abraçando-o, tentou mais uma vez sentá-lo e...conseguiu ! Porém, nesse exato momento, a luz do hospital apagou.
Acontecia o temível "apagão".
Marieta apavorada, ficou paralisada. A situação era patética, ela abraçada ao cadáver com os braços ( dele ) dependurados sobre seus ombros, sentindo o contato gélido da morte. Isso durou uns três intermináveis segundos, que pareceram horas. Mas, finalmente a luz voltou e Marieta, retomando o equilíbrio emocional, agilizou o trabalho, antes que ocorresse outro temido
"apagão", o que aliás, se tornara comum naquele hospital, às vezes se estendendo por um tempo mais longo, pois o velho gerador também costumava entrar em pane.
Depois, de muita "ginástica" com o pobre defunto, conseguiu colocá-lo na maca e conduzi-lo até ao elevador, parando algumas vezes, pois a maca estava com defeito, desnivelando para um dos lados, o que punha em risco o corpo de rolar ao chão. Enfim, entrou no elevador e chegou ao térreo, onde ficava o corredor, que levava ao necrotério. Quando a porta do elevador se abriu, Marieta forçou a maca para sair e saiu, mas ... DESASTRE ! Com o solavanco o corpo projetou-se ao chão acompanhado de um novo ...
"APAGÃO" !
- Não ! De novo não ! - Gritou Marieta desorientada no escuro corredor e logo pensou em pedir ajuda na Portaria, que ficava alguns metros dali. Desesperada, sentindo a sensação de impotência ante o medo, que dentro dela crescia com a densidade da massa daquela escuridão, encostou-se à parede do corredor tentando se acalmar. E lembrou de uma estratégia de infância, que ela ainda hoje usava: cantar para vencer o medo. É verdade, que essa atitude, algumas vezes já lhe causara transtorno e vergonha, como o acontecido na semana passada quando (como hoje), transportava um corpo para o necrotério e deu-se o
"apagão". Ela, presa com o defunto no elevador escuro, entrou em pânico e começou a cantar, ou melhor, a berrar:
" Amor ! I love you
Amor ! I love you ..."
Assim que a luz acendeu, a porta do elevador se abriu e a sua frente surgiu a figura toda de branco do Dr. Romualdo, que de olhos arregalados indagava: - Está louca ? ! ! !
Marieta tinha ficado muito envergonhada pelo "flagra" . É, mas agora, ali naquele corredor escuro, certamente não haveria ninguém. Começou a cantar bem alto, caminhando lentamente. Esgueirando e tateando no escuro, se orientando pela parede do corredor, seguiu cantando rumo à portaria:
" Tá dominado
Tá tudo dominado...
Tá dominado... "
Algo passou tapeando-lhe o rosto. Parou, petrificada, segurando "aquela coisa". Respirou aliviada, era a samambaia, que ficava num grande vaso no corredor e continuou seguindo em frente cantando:
" Ai um tapinha
não dói
um tapinha..."
Enquanto isso, o corpo do "seu" Francisco ficou lá, estendido no chão do corredor.
Acontece, que nesse meio tempo a auxiliar, Das Dores, que vinha a caminho do elevador carregando uma bandeja de curativo, também fora pega de surpresa pelo
"apagão" e tonteando no escuro, tropeçou no cadáver, que obstruía o caminho, caindo por cima deste com bandeja e tudo que tinha direito. Sentindo o contato com aquele imenso volume e sem entender o que se passava, começou a gritar desesperada: - Me acudam ! Pelo amor de Deus !
E Deus atendeu seus alucinantes berros e a luz voltou.
Marieta, que neste momento chegava com o Augustinho ( moço da recepção ), não acreditava no que via. Era um quadro realmente de tragi-comédia. Via-se a gorda Das Dores, com os olhos esbugalhados esparramada sobre o cadáver do "seu" Francisco, em meio ao material de curativo, gazes, ataduras esparadrapo, soluções de
Povidine, éter, soro fisiológico etc, etc. Marieta e Augustinho, controlando o riso, ajudaram-na a levantar e recompor-se. Retomada a limpeza e a ordem, após as devidas explicações, os três já mais calmos cuidaram de colocar o finado na maca e conduzi-lo finalmente ao necrotério.
Retornando ao seu posto, Marieta encontrou a Enfermeira-Chefe que indagou:
- Como vai o plantão Marieta, tudo em ordem ?
- Sim, tudo na mais perfeita ordem e ...paz !
E disfarçando o sono e o cansaço tentou sorrir.
Finalmente, dali a três horas seu plantão chegaria ao fim e até lá, com a ajuda de Deus, não haveria mais
"apagão" e, com certeza, nem um "pacote" para ela ou... Haveria ???
( Publicado na Antologia "Luz e Sombra" - Arnaldo Giraldo - São Paulo - 2002
Páginas 78 a 81 - Primeiro lugar no IX Concurso Internacional de Outono de São Paulo).
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