" O CASAMENTO DO JOCA "
(conto)
João Matvichuc
Finalmente, o grande dia de Joca chegara. Agora, mesmo que quisesse, não seria mais possível voltar atrás, sem dar vexame. Provocaria um escândalo sem precedentes, pois um noivado tumultuado, que se estendera por treze longos anos, agora finalmente iria colocá-lo na lista dos " homens sérios ".
As desavenças familiares, _selfmente por parte dos pais de Aninha, foram a tônica _self dos conflitos. Os velhos não se conformavam com a série de adiamentos promovida pelo rapaz. Foram tantos que chegaram a perder a conta. "Seu" Joaquim, o pai de Aninha, velho português de Trás-dos-Montes, era um daqueles, que não levava desaforos para casa e toda vez que cruzava com Joca, ao ouvir suas explicações, um tanto indecisas, ficava furioso torcendo os longos bigodes, já um tanto ralos e partia prá cima do rapaz, tentando obter dele um ponto final para tanta embromação. O rapaz gaguejava e não conseguia balbuciar nenhuma palavra para aplacar a fúria do futuro sogro, quando conseguiu, acabou despejando num só fôlego que tinha acabado de marcar o casamento e que dessa vez a coisa ia realmente acontecer.
O velho ficou estupefato, não estava acreditando no que ouvia. Permaneceu boquiaberto, sem entender nada, como se os seus neurônios tivessem sido momentaneamente desligados. Após alguns segundos de silêncio, suas fichas mentais cairam e ele abriu um largo sorriso, abraçou, o agora, futuro genro, e com um gesto carinhoso disse: - “Bem que já era tempo. Milagres demoram, mas acabam acontecendo”.
Joca, naquele instante, percebeu a extensão do seu gesto e de quanto fora difícil tomar aquela decisão. Desempregado, conseguira comprar com muita dificuldade uma camioneta Studebaker ano 50, um tanto velha, mas foi tudo que conseguira adquirir com a miséria paga pelo seu ex-patrão, que teve a coragem de chamá-la de "justa indenização ", tão justa, que só pôde comprar aquele velho calhambeque.
E foi desde jeito que Joca se transformou num pequeno empresário do setor de transportes, ou quase isso, quando estacionou sua “relíquia” na praça _self do velho bairro paulistano da Vila Guilherme, provocando risos de deboche nos seus companheiros. Ele, porém, não se deu por vencido e partiu prá luta aceitando qualquer tipo de carreto e o que mais aparecia eram as famosas mudanças da classe menos privilegiada da sociedade: os pobres, que estão sempre mudando, em decorrência dos despejos. Triste sina dos “sem teto” que vivem nesse pais, sonhando o impossível.
Certo dia, pegara um carreto de doações de roupas, alimentos e medicamentos, que se destinavam aos pacientes de um hospital psiquiátrico, que vivia da caridade pública. Lá conheceu Gustavo, o Gugú, rapaz educado, muito simpático, que exercia a função de almoxarife e acabaram se tornando amigos e confidentes. O amigo fora abandonado pela noiva, que o trocara por um cara “feioso”, mas... Rico. Sempre o vil metal a corromper a humanidade, transformando o Amor num sentimento inócuo e totalmente descartável. Essa história deixou Joca muito preocupado e indeciso se devia casar ou não com sua "portuguesinha". E se ela o traísse com um rapaz mais bonito que ele? Talvez, com mais dinheiro? As dúvidas e a cisma o estavam transformando num ser taciturno e melancólico, a ponto de quase desistir do casamento, daí os sucessivos adiamentos. Casar ou não casar? Eis a questão que o atormentava. E para piorar a situação, sua noiva Aninha era muito geniosa, muito parecida com a futura sogra, Dona Deolinda, "chatérrima", que ficava o tempo todo cobrando, lembrando dos seus deveres, insinuando que ele deveria tomar uma decisão, etc, etc. Isso muito o irritava, pois se antes do casamento era assim, imagine depois...
O amigo Gugú estava procurando por uma casa para morar e Joca, sempre prestimoso, apresentou-o ao seu futuro sogro, "seu" Joaquim, e conseguiu que ele alugasse uma das dezenas de casinhas, que possuía na Vila Guilherme, todas com cômodos pequenos, alinhados em túnel, banheiro fora de casa, distante, que fazia seus moradores tomarem chuva ou ficarem expostos às intempéries quando corriam pra fazer "xixi", nas frias madrugadas, da velha metrópole paulistana.
O velho português vivia dos aluguéis dessas casas, além de um pequeno empório de secos e molhados, com a predominância dos molhados – um verdadeiro boteco, na acepção da palavra. Era muito conhecido por uma bebida, que ele mesmo fabricava, um tal conhaque de ameixas, que aprendera a fazer em Portugal e agora fazia cá em “nossa terrinha". A única coisa que nem ele, nem os moradores, gostavam da velha Vila Guilherme era a proximidade de suas casas com o Zoológico, de propriedade do "seu" Antônio, velho português transmontano, que viera de Portugal junto com "seu" Joaquim, pai de Aninha. Em vez de montar uma padaria, como a maioria de seus patrícios, seu Antônio montou um Zoológico, bem próximo do Largo da Vila Guilherme. Adquiriu vários animais, alguns bem ferozes e como o dinheiro era escasso, não cuidava dos bichos e nem dava segurança aos moradores. Assim, muitos fatos desagradáveis aconteceram, como o da invasão da festa do casamento.
A coisa aconteceu na tarde ensolarada daquele Sábado, quando os noivos radiantes e felizes, após a cerimônia religiosa na igreja do velho Parí, voltaram para casa, a fim de comemorarem o tão esperado matrimônio. Foi preparada uma grande festa, com muitos comes e bebes. A mesa exageradamente comprida, fora improvisada com tábuas, para receber os mais variados quitutes, desde frangos assados, batatinhas temperadas no vinagrete, canapés de tudo quanto é tipo, inclusive de pedacinhos de pão com maionese enfeitada com rodelas de picles e o que mais chamava a atenção eram os enormes cachos de bananas maduras sobre a mesa, que na pior das hipóteses serviriam para alimentar os convidados mais famintos. Não faltaram nem mesmo os famosos cajuzinhos.
Havia no canto da sala um enorme panelão, cheio até a boca, de pedaços de pernil assados e mergulhados num molho espesso de tomate, iguaria que era disputada a empurrões, socos e pontapés, pelos convidados esfaimados. No inicio colocavam os pedaços sobre os pães, depois não perdiam mais tempo com a etiqueta e mergulhavam a mão e o pão ... Diretos no panelão. Gugú, o padrinho do casamento observava tudo à uma distância discreta.
Em dado momento, alguém lembrou de abrir a janela da sala para entrar ar e luz e o que sucedeu foi terrível. Surgiu uma enorme cabeça emoldurada por uma vasta juba. Era um leão, que com um urro medonho, lançou seu protesto por não ter sido convidado. Houve grande tumulto com correrias e desmaios ante tão inusitado visitante. Os mais corajosos pularam a janela do quarto da frente e correram para a rua atrás de socorro. Nem foi preciso, pois a polícia e os bombeiros já estavam à postos. Um não menos assustado sargento indagou: - “Cadê o bicho?
Alguém respondeu: - “Tá lá defronte a janela da sala”.
Os policiais percorreram em volta da casa, mas não acharam o bicho, até que se ouviu gritos na vizinhança, para lá eles correram e capturaram o enorme felino.
Aninha, a noiva muito nervosa, não se conformava com os acontecimentos daquele dia. Primeiro fora a costureira, Dona Jordelina, que só conseguira aprontar o vestido meia hora antes do casamento e ela fora obrigada a se vestir na sacristia da igreja. Um disparate ! Agora, na festa aparece um LEÃO ! O que mais poderia acontecer, meu Deus?
Algo lhe dizia que o futuro do seu casamento seria um fracasso. As coisas não iam bem. Tentou afastar esses pensamentos negativos de sua mente e foi ao encontro dos sogros, "seu" Augusto e Dona Florinda, (portugueses da Madeira), que pareciam felizes com o casamento do filho até o exato momento que "seu" Joaquim (pai de Aninha) resolveu abrir algumas garrafas de seu famoso conhaque de ameixas – desgraça etílica, responsável pela maioria dos tumultos familiares. Todos começaram a beber o malfadado conhaque e daí a pouco os ânimos se exaltaram. Alguns de forma positiva, como o caso da costureira Dona Jordelina, senhora muito católica, tímida e pacata, que após alguns tragos, resolveu dançar um alucinante Rock acompanhado de um "strip-tease". As pessoas acudiram rapidamente, arrastando-a em direção do banheiro, no fundo do quintal, para se recompor e lá a deixaram. De repente, gritaria, gritos de socorro. Era Dona Jordelina, que ao entrar no estreito banheiro deparou com um enorme gorila, sentado na bacia, se deliciando em desenrolar o rolo de papel higiênico e vendo a velha costureira, assustado, agarrou pela cintura e obrigou-a a sentar em seu colo. A velha perdeu a fala, tamanho seu pânico.
- “ Mas é o Dudú, esse macaco fujão ! - Disse um dos bombeiros rindo. Venha, vamos voltar pra casa, seu safado”.
Mas por mais que tentasse, o esforçado bombeiro não conseguia demover o enorme bicho dos seus intentos, que apenas balançava a cabeça negativamente e continuava segurando a espavorida senhora. Foi preciso anestesiá-lo para levá-lo de volta ao Zoológico. Dona Jordelina, depois desse susto, nunca mais provou bebida alcóolica.
Após resolver o problema do gorila Dudú, os bombeiros correram para atender uma outra gritaria que vinha da rua. Eram inúmeros macacos dependurados, como moleques travessos, na traseira de dois ônibus, que se cruzavam naquele momento.
Tentaram retornar a festa pela segunda vez. Esta parecia um palco de guerra, não sobrara nada. A mesa improvisada despencara no chão e a disputa pelos alimentos continuou, num nível mais baixo, no chão. A infeliz noiva soluçava num canto e Joca desarvorado, tentava consolá-la.
Na janela onde antes estivera o leão, agora via-se uma ... GIRAFA, que enfiando a cabeça, esticava seu longo pescoço, para mastigar as estimadas cortinas de renda portuguesa da Dona Deolinda (herança da "santa terrinha"), que ao deparar com
com aquela desgraça, lançou-se, desesperadamente, atracando-se ao pescoço da girafa, que assustada escapuliu, sumindo pelo quintal, deixando a velha portuguesa aos prantos, vendo a sua cortina toda dilacerada.
No meio de todo esse tumulto ouviu-se o toque estridente e intermitente da buzina de um caminhão, disparando ruidosamente - Seriam os macacos roubando o caminhão? Joca, em pânico, entendeu numa fração de segundos o que estava acontecendo – “Meu Deus! Meu caminhão tá sendo roubado” – E disparou em desabalada corrida pela rua com grande acompanhamento. Pois é, meus amigos, naquela balbúrdia toda, alguém aproveitou para roubar a velha caminhonete, o único meio de vida do recém-casado Joca. Ele tinha equipado o veículo com um excelente dispositivo de alarme, totalmente inédito e criado por ele próprio. Funcionava da seguinte maneira: quando alguém tentasse colocar o veículo em movimento, soltando o freio, para dar a partida através de um tranco, esse não acontecia, pois além de não pegar, o sistema travava a direção do veículo, que disparava ladeira abaixo, numa barulheira infernal, pois era acionada a buzina e o veículo, com direção travada, ia direto na direção do primeiro murro que encontrasse pela frente. Além disso a barulheira era incrementada com o ruído estridente de dezenas de latas chocalhando nos paralelepípedos, amarradas no pará-choque traseiro, onde se lia "recém-casados" e para alegria da cachorrada, anunciando ao bairro todo, a tentativa de roubo da velha caminhonete. Os ladrões, bem que tentaram dar a partida normalmente, através de uma ligação direta na ignição, mas não a acharam. O caminhão só pegava movimentando uma alavanca de ferro, que era colocada num buraco na frente do veículo. Coisa dos tempos passados. Coisa que só acontecia na década de 50. Os azarados meliantes, logo após baterem com o veículo no murro, deram de cara com os policiais e bombeiros, que ainda estavam procurando os bichos "fujões" do Zoológico e acabaram levando mais uma dupla de gatunos para o "xilindró".
Depois desses hilariantes acontecimentos, Joca ficou feliz em recuperar sua caminhonete e acabou rindo do desfecho da história. Seu casamento, apesar dos pesares,
das brigas dos familiares, acabou dando certo, até hoje. Os noivos tinham uma coisa em comum – duas temperamentais famílias portuguesas, protagonistas de muitas brigas e confusões. Talvez, esse seja o tempero ideal de uma vida conjugal, mergulhada muitas vezes numa enfadonha rotina repleta de desgastes.
Gugú já não mora mais na Vila Guilherme. Casou-se com uma atriz e também virou ator e escritor. Os velhos portugueses já morreram há anos, mas ainda são lembrados com muito carinho. Joca, hoje, é dono de uma transportadora em Guarulhos e aposentou sua velha e querida Studebaker- 50 e vive muito feliz com Aninha e seus onze filhos, relembrando um passado de muitas recordações e saudades.
É, e eu como bom saudosista, também sinto muitas saudades
... saudades daqueles bons tempos que não voltam mais ...saudades de tudo...
até... do casamento do Joca.
( Conto publicado na Antologia “Letras em Cartaz” – 2005 da Editora Cartaz Cartolina Araruama – Rio de Janeiro – Páginas 30 a 35 ).
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