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O "APÊ" DO JOHNNY

( conto )

João Matvichuc

 

                   Manhã de sábado ensolarada, de uma beleza esfuziante, inundando tudo com luz e calor, pressagiando um belo e promissor final de semana, em contraste, com o aspecto sombrio e friorento dos pardieiros do velho centro paulistano.    

                   O sol era ardente, tentando se infiltrar entre as paredes frias e cinzentas dos edifícios descascados pela rudeza do tempo, numa luta constante para quebrar o acinzentado da selva de pedra paulistana e aquecer um pouco as almas, dos que nesta vida, simplesmente vegetam, fingindo viver.

                   Velha várzea do Glicério, de encantos mil, onde o silêncio das tardes é quebrado pelo monótono badalar dos sinos da velha Catedral da Sé, com sua estranha comunidade, onde proliferam os mais variados tipos humanos, como os aposentados à procura de um canto sossegado, onde possam viver em paz os derradeiros instantes de suas existências; de prostitutas e travestis competindo no mesmo espaço, no quadrilátero do pecado, onde a palavra de ordem é faturar, para poder sobreviver; de traficantes insinuantes e viciados esmolando o próprio vício; de orientais envolvidos na Máfia Chinesa, onde um simples ponto de drogas, pode ser o limite da vida.

                   Nessa Babilônia paulistana, de estranhos e curiosos seres viventes, na agrura estafante do seu dia-a-dia, vamos encontrar Johnny, um paulistano quarentão, à procura de um espaço para viver. Divorciado, distante dos filhos, acabou encontrando guarida naquele edifício descomunal, onde a maioria dos moradores pertencia a sossegada classe dos aposentados.

                   Johnny, estava muito feliz com sua namorada Fátima, (a Fafá ) e naquele momento se encontravam diante da porta do 54, conhecido apartamento do prédio, de recordações não muito agradáveis para os demais moradores. Estavam retirando o miolo da fechadura da porta, para levá-lo ao chaveiro e assim trocar o segredo daquele "apê", mais conhecido pelos vizinhos como "antro da perdição".

- " Anda logo com isso Johnny, antes que o mulherio volte "– Dizia ela, com a 

      rispidez própria de sua natureza.

      -  “ Calma Fafá que eu não sou dois... "

                   Mas que mulherio era aquele, que se referia Fafá? Para responder, era preciso voltar ao Passado, época em que Johnny alugou o apartamento para morar, quando estava numa situação financeira difícil. O jeito foi arrumar um sócio para dividir as despesas do aluguel, ou melhor, uma bela sócia. Morena escultural, linda como o pecado, e super prestimosa em ajudar nas aflições financeiras do rapaz. Conhecera Vitória, a Vic, numa casa noturna no velho Bexiga. Lá, ela empresariava artistas e Johnny procurava músicos para formar uma banda, além de curtir na época, um malfadado amor platônico pela jovem Suzette, agravado pela descoberta de que ela era "sapatinho" (apelido de jovens lésbicas), companheira de "sapatões" (as mais velhas).

                   Johnny e Vic passaram a morar juntos, ela no único quarto com suas mulheres, ele na sala, sozinho com sua solidão. O velho "Apê" (apartamento) se transformou de maneira radical:     a sala para receber visitas (as mais estranhas) virou dormitório do Johnny. O quarto, um estúdio fotográfico completo com todos seus apetrechos, onde Vic fotografava lindas mulheres nuas para as revistas de sexo. A pequena área de serviço fora toda pintada de preto, inclusive os vidros do vitrô, transvestiu-se num laboratório para revelar fotos. E o varal, antes ocupado com roupas, agora secava as fotos das "gatas esculturais"... sem roupa. Uma loucura visual !               E, abrindo-se a janela (a única) tinha-se uma magnífica vista, do poluído e mal cheiroso Rio Tamanduateí. Vic era muito esperta, viva como ela só. Prometeu dividir as despesas com o tonto do Johnny, o qual engabelou o tempo todo e no final das contas acabou sem dar nenhum tostão, como contribuição pela sua estada naquele conturbado lar, se é que podemos chamá-lo assim.

                   As sessões de fotografia continuavam. Era um entra e sai de lindas mulheres, um movimento de louras, ruivas e morenas no corredor e no sobe - desce do elevador. E todas em direção ao "Apê" do Johnny e com um só objetivo em mente – serem fotografadas e ganhar muito dinheiro, nada mais além disso, pelo menos, aparentemente, nada indicava que elas tinham qualquer outra atividade, a não ser que Johnny fosse inocente demais em seus julgamentos. De qualquer maneira, ressalvadas as aparências, ele não entendia bem, porque algumas delas pernoitavam no apartamento, para ficarem "batendo papo" com a Vic e só saiam dali, de manhã, com cara de quem dormiu mal.

                   Os moradores vizinhos começaram a estranhar a movimentação feminina do 54 e a tranqüilidade dos mesmos terminou no exato momento que Johnny montou sua banda musical, muito louca e resolveu inscrever uma canção romântica no Festival da Rede Globo. Era necessário gravar a canção numa fita cassete e o apartamento era um ótimo local para os ensaios e gravações. Isso depois das 23 horas, quando os músicos estavam disponíveis. Foi um terror ! – guitarras estridentes estourando tímpanos, uma bateria ensurdecedora, enfim o próprio Inferno na Terra, varando as madrugadas. As vezes, davam trégua aos moradores do prédio, quando iam tocar nos barzinhos próximos do Metrô Santana, em troca de alguns trocados e um jantar.

                   Naquele prédio, ninguém mais conseguia dormir e houve então uma torrente de abaixo-assinados. O clamor público exigia as cabeças dos responsáveis, ou seja, a expulsão sumária dos malucos barulhentos. Johnny, inabalável, continuava firme em sua missão. Deu um novo visual para os rapazes da banda, inclusive ele próprio. Todos passaram a usar roupas de couro preto, coladas ao corpo, metais tinindo nos pulsos e longos cabelos até os ombros com tonalidade caju, horrorosa! Pareciam extras-terrestres, vindos de uma Galáxia distante e perdidos no velho Glicério. A banda tinha um nome bem sugestivo: "PIRILAMPOS DA QUIMERA", mas poderia ser "pernilongos", pois era o terror das madrugadas", tendo como baterista, a conhecida Suzette, desilusão amorosa do Johnny.  A menina era muito eficiente, pois de dia fotografava as modelos e a noite "espancava" a bateria.

                   Aquela ruidosa orgia tinha que acabar. Manoel Tobias, o vizinho português aposentado, já não agüentava mais aquela bagunça. Morava defronte do agitado e trepidante "Apê" e ficava, cada vez mais, assombrado com o movimento que ali rolava. Assumiu a posição de vanguardeiro defensor dos costumes e da moralidade, assinando várias listas de abaixo-assinados. Odiava do fundo do seu coração aquele "diabo louro", causador de tantos tumultos, que infernizavam sua existência. Mas Johnny tinha uma excelente defensora – sua tia Amélia, síndica do prédio, que o defendia argumentando ser ele uma boa pessoa e que breve tudo estaria normal, pois acreditava na sua salvação. Os condôminos, porém, não se conformavam com tanta placidez e o circo de horrores continuava pegando fogo.

                   Quanto a bela Vic, mostrou-se a rainha dos calotes. Certa ocasião, ela contratou um dedetizador para acabar com as pulgas, que infernizavam as noites mal dormidas do apê. Ninguém dormia, ninguém transava, apenas se coçava, num estranho ritual de auto - flagelação coletiva. Malditos insetos! Sugadores endemoniados! O moço dedetizador recebeu a gloriosa incumbência de exterminar a "Praga Gliceriana". O problema foi receber o pagamento do seu trabalho. Tentou, por diversas vezes, receber o maldito dinheiro, falando com a Vic, mas de nada adiantou. Ela fugia dele e driblava o moço o tempo todo. Obstinado, prometeu que receberia aquele dinheiro de qualquer jeito, nem que isso fosse a última coisa que faria na vida. Após incontáveis tentativas, resolveu dormir em frente ao apartamento, e deitou-se no chão junto à porta e só assim, com este estratagema, o obstinado e teimoso dedetizador conseguiu receber seu dinheiro. Vic ao sair de manhã, acabou tropeçando nele e não teve outra saída, a não ser pagar a dívida.

                   É, esse episódio tinha se passado há alguns dias atrás e agora, ele e Fafá ali estavam diante da porta do 54 trocando o segredo da fechadura.

·        "O segredo da fechadura foi trocado, agora quero ver como essas "sirigaitas" vão entrar no apartamento" – Disse Fafá.

·        "É Fafá, você tem toda razão. Antes que eu me esqueça, vamos pegar todas as "tralhas" delas e levar tudo ao "Apê" da Vanessa lá na Tabatinguera". Vanessa era uma das amiguinhas da Vic. Numa questão de minutos, tudo foi entregue no dito apartamento.

O relacionamento de Fafá e Johnny foi se solidificando mais e mais até que resolveram... casar. Ela tomou a firme resolução de transformá-lo num homem de verdade. Como primeiro passo, ordenou que cortasse aquele ridículo cabelo, usasse roupas normais, tomasse banho, enfim tudo o que uma pessoa civilizada faz. A mudança foi radical: cabelos curtos com a cor natural, aparência de um senhor distinto, de terno e gravata, que se fazia acompanhar sempre de sua dileta esposa. Os bagunceiros sumiram para sempre. Certa noite, quando voltavam de seus trabalhos, na saída do elevador, foram surpreendidos no corredor pela presença do Manoel Tobias, o velho português que, em atitude respeitosa, circunspecta, dentro de uma inesperada formalidade, dirigiu-se a eles:        - "Boa Noite ! Desculpe se os incomodo, mas não consegui me conter diante de tão distinto casal".

·        " Como assim? – Indagou o espantado e um tanto assustado Johnny.

·        " Desejo apenas agradecer-lhes por terem se mudado para este apartamento. Vejo que são pessoas distintas, merecedoras de todo nosso respeito (levanta as mãos para o céu)- Graças a Deus! Ficamos livres dos desordeiros que aqui moravam. Era um bando de cafajestes barulhentos, comandados por um depravado, de cabelos cor de fogo. O próprio Capeta! Johnny olhou sério para o vizinho, controlando o riso. O homem, evidentemente, não o tinha reconhecido em seu novo disfarce social. As aparências sempre enganam. Despediram-se e entraram rapidamente no apartamento, antes que as paredes, testemunhas dos passados delitos, os denunciassem. E assim, o "Apê" do Johnny tornou-se um verdadeiro lar, onde após um dia de trabalho, ele voltava feliz para os braços de sua querida Fafá.

Nota do autor: Dedico esse conto à minha esposa Fátima Queiroz, que me inspirou a criar essa obra literária e também colocar um pouco de ordem na minha vida.

 

( Conto publicado na Antologia “Palavras, Som e Fúria, pela Editora Arnaldo Giraldo de São Paulo, páginas 63 a 68 – 2006 ).

 

 

 

 

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