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 “ A ODISSÉIA DE UM POETA “

  ( conto ) João Matvichuc

         Negra era a noite. Na tenebrosa  escuridão,  cintilava o clarão dos raios, iluminando a fúria do mar,  se agitando  e  bramindo  sob  a  tempestade,  que  desabava sobre o oceano, fazendo-se ouvir o sibilar do vento e o ribombar dos trovões estremecendo a Natureza. O oceano crescia e se agitava na fúria dos turbilhões devastadores, em direção das praias.  

         Navegando nesse caos uma caravela portuguesa debatia-se sobre as gigantescas vagas, que se levantavam à altura das velas,  atirando a pequena embarcação de um lado para o outro, fazendo-a rodopiar como uma pequena casca de noz, na crista das ondas. Forças descomunais da Natureza impulsionadas, levavam o  pânico à tripulação, que lutava para se salvar. Uns agarrados ao mastro, outros atirados ao mar. Entre estes,  um homem se debatia  desesperadamente sobre as ondas, apertando contra o peito um manuscrito. Sentia as forças abandoná-lo e ao som de estrondoso trovão, teve a visão de uma enorme cabeça emergindo da fúria das ondas e um vulto crescendo sobre o mar, tomava proporções maiores que a caravela. Era Possêidon, deus de todos os rios e todos os mares, que não se continha em seus caprichos e bramia com vigor seu tridente endemoninhado sobre o mar, crescendo sua fúria e levando  o desespero às embarcações, que ousavam  desafiar o todo poderoso deus, que se divertia gargalhando, insensível às súplicas dos desesperados.

         Ouviu-se um grande estrondo, um raio atingiu o mastro principal e o homem agarrado ao manuscrito vê Possêidon comandando um coro de deuses do Olimpo, cujo som crescente se confundia com  o barulho da tempestade:

          “ Eu sou aquele grande cabo / a quem vós chamais de Tormentório “

O Coro vai acompanhando o naufragar da caravela, que desapareceu, engolida pelo mar. Viu-se apenas o vulto do homem, que com uma mão segurava o  manuscrito e com o outro braço se apoiava sobre um barril, mas aos poucos sentiu a morte se aproximando e antes do fim ainda vislumbrou os deuses do Olimpo.  Interrompendo o coro,  ouviu-se a estrondosa voz de Zeus, que ressoava feito um trovão, sacudindo a Natureza.

 

- “ Detenha  Possêidon os seus desatinos!   Parai  a fúria  do  mar e da  tempestade!  

     É  uma ordem! 

- “ Não,  meu  irmão  Zeus,  não  o  obedecerei,  pois  a  minha  vontade  é  que os  ventos  soprem e que o mar fique cada vez mais e mais encrespado”.

      Furioso,  gesticulou   com   seu   tridente   sobre  o  mar  e  a  tempestade  prosseguiu. Plutão,   o  deus  que   reinava   sobre   Hades,   as   profundezas  do  Inferno,  tentou  demovê-lo de suas intenções malignas.

- “ Ó Grande Possêidon !  Chega de brincadeiras,  pois  vossa  última  façanha  marítima  quase destruiu meu reino. O inferno  sacudiu  tanto,  que  pensei  que  o  mundo  fosse  desabar sobre minha cabeça”. 

         Zeus  interviu  novamente:

         - “ Possêidon. ordeno   que   acalme  a  tempestade   ou  perderemos  nosso poeta...

         Possêidon   lançou  um  olhar  sobre   o  cenário  do  desastre  e  após  breve  reflexão, levantou  novamente  o  tridente  e  fez   um   gesto   sobre  o  mar,   que  se   acalmou, a  tempestade  cessou. Os deuses silenciosamente  desapareceram.

         Isso  tudo  foi  o  cenário  de  uma  tragédia, no distante Mar Vermelho, na costa do Camboja, próximo do Rio Mekong.

         Transcorria o ano de 1558, na era quinhentista dos grandes descobrimentos, dos navegadores portugueses, que se aventuraram a enfrentar os perigos de uma travessia marítima, enfrentando ventos e tormentas, que quando não naufragavam ficavam à deriva e acabavam  descobrindo ou achando terras inimagináveis, como a descoberta  do  nosso  querido  Brasil.

         Enfim, a nau naufragou  levando centenas de homens às profundezas de suas águas. O mar atirou os destroços na praia e entre eles um homem, quase desfalecido, agarrado a um barril. Era o nosso herói, que aos poucos foi abrindo os olhos e levou um susto quando viu um rosto com dois olhos arregalados, fitando-o com  curiosidade. Sentou-se e viu melhor os detalhes da figura à sua frente. Era um soldado, que tentava ajudar nosso náufrago, que tossindo muito exclamou:

-   “ Caramba,  pensei  ter  chegado  a  minha  hora “

-   “ Mas... o  que  aconteceu?   Indagou  o  soldado.

-   “ Foi um terrível naufrágio. Não  sei  quantos  escaparam,  foi  uma   tempestade,  que parecia o fim do mundo!

       Apresentaram-se. Luís  o  poeta  e  Gregório,  o  ordenança  do  vice-rei em Goa.

       O soldado  reparou que o naufrago não  tinha o  olho  direito  e  curioso perguntou  o que acontecera,  recebendo como resposta que o tinha perdido numa campanha militar contra os mouros em Ceuta, na África. O soldado lamentou o ocorrido, o naufrago sorriu e pediu para que não lamentasse, pois ainda caolho, fazia muito sucesso entre as mulheres, que por pura maldade, o chamavam de “Cara Sem Olho”. É próprio delas  fazerem os  homens  sofrerem. E, como  vingança,  começou a declamar: “ Dos olhos não faço menção / pois quereis que olhos não sejam / vendo-os, olhos sobejam / mas vos vendo, olhos não são “. Em seguida, o soldado indagou sobre o manuscrito e Luis respondeu que era o seu maior tesouro, o único que lhe restou do naufrágio e pretendia publicá-lo , assim, que voltasse a Portugal.

         Caminharam  silenciosamente  pela  praia.   O  poeta  tristonho  não  conseguia conter as lágrimas,  que  teimavam  rolar  pelo  rosto.

- “ O  que  é  isso,  companheiro?  Por  que  choras? Indagou o soldado.

- “ Choro  por  um  amor  perdido.   Choro   de   saudade...   saudade  de  minha     Dinamene! A minha Dina, que sumiu nesse macabro naufrágio. Amaldiçoado Possêidon,   que   matou   o   meu   amor   e   me  deixou  tão  só  e  tão  infeliz.     

     E declamou ao seu amor:

“ Ah! Minha Dinamene!  Assim  deixaste / quem  não  deixara  de  querer-te / Ah!  Ninfa  minha!   Já   não   posso   ter-te   /   tão    assim,   esta   vida   desprezaste! /     Como   já  para sempre te apartaste de quem tão longe estava de perder-te? Ah!  Ninfa minha!  Quanta saudade sinto de ti. -  (virou-se para o soldado , dizendo) – “Tentei em vão salvá-la,  mas Possêidon a levou, maldito seja...

         Os dois, em silêncio, partiram rumo ao  palácio  do  vice-rei,  Dom Constan-tino  de  Bragança. Novas apresentações e a promessa  do  monarca  em  ajudar o poeta patrício a refazer sua  vida,  voltar  à  Pátria  querida  e  realizar seu maior objetivo  –  a publicação de seu livro de poemas. Indagado sobre suas funções  na  Corte, relatou a Dom Constantino que era provedor-mor dos defuntos e ausentes,   nas  partes  da  China  e  o  monarca   não pode  conter  um  sorriso  malicioso  ao  imaginar o poeta cuidando das viúvas dos ausentes.

         A  hospedagem no palácio, o aconchego de uma cama macia, o sono acalenta-do por Morfeu, trouxeram-lhe lembranças e reminiscências dos dias felizes de sua  infância,  à  beira do Mondego,  onde o carinho materno de Dona Ana de Macedo, superou a ausência de um pai de sangue aventureiro, assim como ele, que abandonou a família para  correr atrás das riquezas de além mar. Riquezas que, hoje em dia  se  encontram  com  facilidade  nos  supermercados,  as famosas especiarias: pimenta do reino, noz  moscada, canela,  etc  e  não se precisa arriscar a vida, em viagens  ultramarinas  para  conseguí-las. 

         Sonhou  também com os agitados dias de sua juventude, o tempo de estudante  na  saudosa   Coimbra,   ao   lado   de   seu   tio,  um  frade de  temperamento duro e implacável,   rigoroso  na  disciplina,   que  impunha  aos seus discípulos, chegando a aplicar  doloridos   corretivos,   onde  a  palmatória  sempre  se  fazia  presente e não perdoava  Luisinho,   moleque  travesso  e  muito  rebelde,    que   não   acatava  seus conselhos.  Anos  profícuos,   que  lhe  renderam  preciosos   ensinamentos   sobre   a literatura clássica da Grécia e de Roma  e  para  dominá-las  teve de aprender latim, italiano e o castelhano.   Orgulhava-se  muito do  seu  Curso  de  Artes.

         Aprendeu com a própria experiência, que toda sua sabedoria se assemelhava  a uma  mísera  gota  de  água  no  oceano  de  sua  existência e soube também que teria  muito a aprender na experiência  ditada   pelo   seu   cotidiano  e  que   nem   sempre  os alfarrábios  literários  dariam  respostas  às  suas  dúvidas.

         Eros  e  Afrodite  surgiram  no  enlevo  de   seus  sonhos  e  de  suas   reminiscências  sensuais e amorosas, fazendo-o  muitas vezes vítima das implacáveis flechas  do  Cúpido,  responsável  pelas  suas  súbitas  paixões,  afastamentos,  perdas  e  a  eterna sensação de solidão  a  dominar  o   sofrido   e   desgastado  coração. Em  Lisboa,  o  poeta  viveu  os  folguedos amorosos com as raparigas cortesãs, que esvoaçavam feito agitadas mariposas   à sua volta, a procura de prazeres, num clima de libidinagem. Nos  divertimentos  poéticos era um líder e  até  recebera o título de  “príncipe  dos poetas”.  Adorava ser boêmio e cortejar as famosas raparigas do Bairro Alto,  no  famoso bordel  “Malcozinhado”,  cujas  mulheres,  na  sua   opinião,   eram  as mais  lindas do Universo. Dizia,  que  o  Amor  era   um   sentimento,  que  ardia  feito   fogo,  que  a   gente  sentia e não  podia  ver. Doía  como  uma   ferida lancinante,  mas  que  também  não  se sentia, pois acabaria  sendo  um  contentamento   descontente.   E   os   versos  ditados  pela paixão que lhe aflorava  a  alma,  caiam  feito  gotas  de  orvalho, umedecendo  os  suaves  lábios  de  carmins,  sequiosos  de  amor  e  paixão.

         Os  deuses  do  Amor lhe sussurravam, que ainda existia em  seu  coração  um espaço  à  mulher  amada,  descrita  em  seus  poemas, como uma  deusa que lhe faz  serenar  o  vento,    nascer   as   flores   e  até   eternecer   os  seculares   troncos  das árvores.  Eram   ainda   vivas   para  o  jovem   Luís,  as  lembranças das  tentativas  amorosas   junto  à  dama  de   companhia  de   uma   princesa   portuguesa,   numa situação  confusa,  onde  não  se  confirmou  se o interesse  do  poeta  era  relativo  à  dama de companhia  ou  à  própria  princesa,  pois  ambas  se  envolveram em  seus  braços,  nos  agitados  jogos  de  amor, das alcovas palacianas. A situação foi pronta-  mente  resolvida  pelo   herdeiro do  Reino,   o  jovem  infante,  Dom João III,  que  expulsou o conquistador  do  palácio e o  condenou à prisão,  não só  pelos  folguedos  amorosos  com  sua  irmã,  mas  também  pelas   dívidas,   que   se  avolumavam  e  o poeta “esquecia” de pagar.

         O caminho para uma nova condenação e a expulsão da própria pátria foi um breve passo, quando se envolveu  numa  briga,  ao  interceder  tentando  ajudar  dois meliantes encapuzados ( amigos seus de boêmia ),  esfaqueou no pescoço  o  funcionário  da  cavalariça  real, Gonçalo Borges, que não morreu por milagre. Os envolvidos escapuliram e o  poeta  foi  parar  no  calabouço do Tronco, velha prisão   lisboeta.   O  que  se  seguiu  foram  as  repetidas   indas  e vindas de sua pobre mãe, Dona Ana de  Macedo,  ao  palácio  real. As súplicas,  só  foram  aceitas  pelo  rei,  com a intervenção da própria vítima,  que  se  comoveu  com  o pedido da mãe, livrando  o  jovem poeta da prisão.  O rei  exigiu que ele fosse alistado por três meses, como soldado miliciano e pagasse uma multa de 4 mil reis,  multa  essa,  que  acabou sendo paga pelos amigos ( como  sempre ).

         Partiu nosso herói  para  novas  aventuras  pelo  Oriente e pela África, onde  sofreu  as intempéries, que  agitavam  as  costas da África,  como  no grande Cabo Tormentório,  onde sempre haviam fortes tormentas, que martirizavam os navegantes lusitanos,  Vasco  da  Gama,  que  o  diga. 

         Os sonhos do poeta se misturavam em matizes de cores  e  sensações,  com  a impressão  de  uma falsa realidade,  que  o  afastava  do  plano  terrestre  e  lhe  dava  a  sensação de ter   morrido no naufrágio e  não  ter  acordado  do  sono  da  morte.  A presença constante  dos  deuses  do  Olimpo, responsáveis por estas sensações, o levavam a considerar  a  possibilidade  de  já  ter  se  desprendido desta matéria, pois tinha  visões  de   sua   querida   Dinamene  e  de todas as mulheres que amara. E o retrospecto   de   uma  vida   inteira    passou  diante   de   seus   olhos,  descortinando  os    segredos  de  sua  alma.  Tudo  que tinha   sonhado   no  plano  espiritual,  não  sabia   se  era  real  ou não. De qualquer maneira estava  gostando de suas visões,    principalmente aquelas que o mostravam   como   um   ser   humanitário,   fora   dos   padrões  de  sua   época,  onde  o  homocentrismo   era   subjugado  pelos  dogmas católicos  regidos  pela   Inquisição,  que  não  perdoava  os  menores  deslizes  da  moral  religiosa.  O  sentido  humanista norteou toda  sua  vida,   principalmente  no  relacionamento  com   o  ser  humano   escravizado,  arrancado  de  seu  lar,  afastado dos entes  queridos, para servir  aos   interesses  de  um escravocrata. O tratamento  que o  jovem poeta deu ao negro  Antônio, o “Jaú”,   foi   digno de  elogio, seu humanismo  considerado  impar,  próprio  dos   grandes  homens,  seguindo os ensinamentos  de  Jesus,  de  amor  e  caridade. As atitudes humanistas do  poeta, o levaram a ser considerado como percursor do Renascimento,  em  plena  Idade  Média.

         De volta à terra natal, em companhia de “Jaú”,  reencontrou a mãe,  os  amigos e foi homenageado pelo Rei Dom Sebastião, que  lhe  entregou o livro  de  poemas  já  editado  (objetivo  principal  de  toda  sua  vida).   E pelos trabalhos prestados à Coroa Portuguesa,  nas  viagens  e  batalhas  contra  os  piratas  e os mouros, foi prometida    uma  pensão vitalícia  de  15  mil  reis.  Se tudo  fora um sonho ou não,  tinha dúvida, pensava até que  já houvesse  desencarnado no naufrágio; sua cabeça parecia  girar  num  turbilhão  de eventos catastróficos,   prisões, amores desfeitos, Peste Negra, doença que o fez sofrer...  sofrer...  sofrer ... vozes ...  estranhas   figuras mitológicas ...  deuses  do Olimpo...  E esse  sofrimento  foi  se  amenizando  na  consolação  de  sua  fé, no desconhecido futuro e na confiança da justiça eterna... E os deuses olímpicos   de  seus  sonhos,  pranteavam    o  poeta,  que   foi   mergulhando  no   profundo   sono   da    Morte.                                          

         O fim lentamente se aproximava, os versos   de  uma  despedida  povoavam sua mente, sentiu-se fraco e impotente para lutar pela vida, que aos poucos foi se esvaindo, sucumbindo diante da terrível moléstia. Na  fraqueza  de  seu  delírio,  murmura seus últimos  versos: “ Foge-me, pouco  a pouco, a curta vida / Se  por acaso  é  verdade  que ainda vivo / Choro pelo  passado e enquanto falo / Se me passam os dias passo a passo / Vai-se-me, enfim, a idade e fica a pena “

         Visualizou nos instantes finais a mãe e o  negro  Jaú  chorando.  Uma  suave  música  o  envolveu  e  aos  poucos  foram surgindo  os  deuses do  Olimpo, que   se  aproximaram e  o  convidaram  para o embarque numa  caravela  toda   branca, onde  viu a doce e querida Dinamene, o grande amor de sua vida, lhe  acenando.          O poeta  levantou-se e caminhou lentamente  rumo  à  barca. Zeus pega em seu braço e mostra a bela inscrição, que ficou gravada em seu túmulo: “AQUI  JAZ  LUIS  VAZ  DE  CAMÕES”/ Príncipe dos poetas de seu tempo / Viveu    pobre e miseravelmente / Assim morreu...” e Zeus completa: - “Serás homenageado todos os anos, no dia de tua morte, 10 de Junho, Feriado Nacional e também “Dia de Portugal”.  E agora vamos, apressa-te que a nave já vai partir! 

Camões  caminhou  feliz ao  encontro  de   sua  amada  e  juntos   viajaram   rumo  à  eternidade.   A   nau,   silenciosamente,  foi    deslizando  sobre as  nuvens,  as  velas  se  agitaram    sopradas   pelo   vento   suave  e  a pequena  caravela  branca,  aos  poucos,  foi   desaparecendo  no   cosmo  infinito.

NOTA DO AUTOR:

Dedico este conto à minha esposa, a escritora Maria de FÁTIMA QUEIROZ  Pinho Matvichuc, que me ajudou nas pesquisas e me inspirou, tornando possível a criação dessa obra literária.

Conto publicado na Antologia Asas e Vôos,  pela Editora Guemanisse, do Rio de Janeiro em 2006, páginas 81 a 87.

 

                               

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