Sentado na beira da cama, ele observava pensativamente a penumbra do quarto sendo devassada pelos raios insidiosos do sol primaveril, atravessando as frestas de uma janela mal fechada e se insinuando nos cantos escurecidos do pequeno cômodo hospitalar. Réstias douradas de luz iluminavam o rosto emagrecido de uma mulher, emoldurado pelas sombras da morte, lábios imóveis como a chama de uma vela que se apagou e Deus a levou para o eterno dos eternos.
Estava triste e saudoso daquele ser que tão subitamente partira, naquele dia tão lindo, onde os pássaros insistiam em cantar, louvando os últimos raios de sol, no lusco-fusco da tarde que morria. Tentava se convencer, que fora melhor para ela, que não sofreria mais nesse mundo de pesares, pois jamais se conformaria, em sua vaidade de mulher bonita e faceira, de viver pela metade, como deficiente físico, contrariando sua vontade férrea de viver, sempre com um sorriso aflorando os lábios, ainda mais, que tinha orgulho de suas lindas pernas, desfilando nas passarelas da moda paulistana e assim de repente, amputaram uma delas, conseqüência de uma gangrena mal curada, que também estava ameaçando levar a outra.
Teria sido castigo de Deus, Por ter sido tão vaidosa, e se julgar eternamente linda e indestrutível ? Ou seria pelo fato de ter feito muitos homens sofrerem Por sua causa, na tentativa de conquistar seu Amor ? Foi difícil responder, mas naquele momento, sentado ao lado de seu corpo inerte, recordou-se dos momentos de cumplicidade, dos mais felizes de sua existência, de uma jovialidade extrovertida, de quem estava de bem com a vida. Sua descontração sempre provocara ciúmes em seu marido, Alexandre.
Brigavam muito. O casamento, fora muito criticado pela família dele, que não se conformava em vê-lo casado com uma viúva, embora jovem, mas já com um filho de um ano de vida. Ele, contudo, enamorado, não deu ouvidos aos apelos paternos e casou-se, contrariando todas as expectativas dos que queriam vê-lo casado com uma moça solteira e descompromissada. São razões do coração que o próprio coração desconhece.
Mas Olga, tinha um segredo terrível, fechado à sete chaves em seu coração, segredo que por mais bem guardado que estivesse, um belo dia acabaria se revelando. E, foi exatamente isso que aconteceu, naquela linda tarde, quase noite, num desses desfiles de lançamento da moda Verão.
Um jovem senhor, muito elegante, terno de casimira inglesa de cor sóbria, sentado próximo da passarela, observava atentamente o desfile. Olga entrou e iniciou a sua caminhada. O senhor, ao olhá-la, teve um sobressalto, à ponto de ficar descompensado, com o coração numa estranha arritmia.
-
" Meu Deus ! É ela !
...
Se houve alguma dúvida, ela logo se dissipou pois o susto dela, a
indecisão que passou a marcar seu caminhar e o gesto brusco de quem foge
de um olhar acusador. Tudo indicava ser ela. Ela mesma em carne e osso. Acabado
o desfile, ele a seguiu e antes que pudesse alcançá-la, ela virou-se e foi ao
seu encontro,
implorando:
-
"Pelo amor de Deus, Francisco.
Não faça
escândalo !
- "Você tem muita coisa para me explicar, Olga.
Realmente, foram anos sofridos de buscas, procurando-a em todos os cantos da vida. Fatos inexplicáveis à procura de respostas. O início do namoro, o casamento rápido dispensando o noivado. E a família dele, de imigrantes alemães enriquecidos pelo Ciclo do Café, que não via com bons olhos essa relação amorosa, tão desigual: ele, herdeiro de uma rede de supermercados em Curitiba, ela uma jovem adolescente pobre, de apenas 14 anos. Tinha tudo para não dar certo e não deu.
O casamento durou exatamente o tempo da Lua de Mel. A magia foi quebrada, na manhã seguinte, com a inexplicável fuga da jovem esposa.E agora, ali numa lanchonete, Olga tentava justificar o injustificável. Disse que agira assim para obter a sua maioridade. Tinha vencido um concurso de calouros na Rádio Nacional e como os pais não aprovavam, partiu para o casamento e a assinatura do seu primeiro contrato, como cantora. Dali foi fácil enveredar por outros caminhos artísticos, _selfmente da moda.
Apesar de ter sido usado como "inocente útil, Francisco a perdoou, pois a amava muito e pensou que ela voltaria para os seus braços, mas nova decepção quando ela revelou que tinha casado com João, um jovem músico evangélico, em São Paulo, iniciando uma nova vida, ela no coral, ele no bandolim. Francisco ouvia tudo com a alma arrasada. Olga continuou a infeliz narração dizendo que João tinha morrido, a deixando viúva-bígama. Porém, não ficara só por muito tempo, partira para um novo casamento e agora vivia feliz, pois amava muito seu marido Alexandre.
Sentindo–se infeliz, relegado ao esquecimento, Francisco retirou-se para sempre da vida de Olga, que mais tarde teve a notícia de sua morte, vítima de acidente de carro. Alexandre, o último consorte, viveu o resto dos seus anos "curtindo" eternas desconfianças.
Os pensamentos voltaram ao velho quarto hospitalar. Ele continuava
observando o rosto da falecida. Caminhou
até a janela para aspirar o ar da noite, envolvido na brisa perfumada pelas
flores. Entraram no quarto para levar o cadáver. Ele, num derradeiro olhar, se
despede:
- "Que Deus me perdoe alguma censura. Apenas
prestei uma homenagem a uma mulher que viveu tão intensamente a vida : Olga,
minha mãe... "
(Publicado na Coletânea de
Poesia & Prosa – "Letras no Brasil"
2001 Taba Cultural Editora – Rio de Janeiro – Páginas 124 a 126).
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