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O MENINO E O VIOLINO

 (conto)   João Matvichuc         

 

                   Ivan, um velho saudosista incorrigível, era movido pelas suas carências afetivas e buscava em sua infância perdida, rostos de amigos que o tempo apagara.  Tentava ligar os elos  do passado a um presente povoado de sonhos e buscas inexplicáveis. Era um velho sonhador sempre à procura de alguém distante e tentava o reencontro para lembrar com muita saudade, o que ficara para trás.

                   Sua esposa sempre o recriminava por esse estranho costume de ficar procurando antigas amizades, que o tempo teimosamente não deixava que o encontro se efetivasse.

-  “Deixa de besteira, meu velho. As pessoas não gostam de ser incomodadas por  um velho maluco, que insiste em viver no Passado.

-   Não estou vivendo no Passado, apenas gostaria de reencontrar meus amigos de  infância.

-   E pra que?  

-  Conversar com eles, saber como estão e o que estão fazendo nessa vida.

                   Os velhos são sempre assim – desprezam o presente e procuram viver de recordações distantes, porque temem o futuro e suas incertezas imprevisíveis. Ninguém sabe, quando acontecerá o fim da caminhada, pelas veredas da vida. Daí a fuga para um passado de recordações e saudades.

                   Ivan andava atrás de um amigo de infância, Eduardo, que marcou muito sua adolescência e a tendência artística que para ambos se iniciou nessa época. O cenário dessa amizade é o velho bairro da Vila Prudente, em São Paulo, onde nasceram. Ivan morava na Rua Ibitirama, ali bem próxima da Avenida Zelina e Eduardo na Rua Cavour, ao lado da Igreja Batista, no mesmo bairro.

                   Sonhos se entrelaçaram, Ivan e sua mania de fazer teatro e cinema, com os meninos do bairro e Eduardo e seu amor incomensurável pela Música.

-  Algum dia, vou ser um grande violinista, dizia Eduardo ao amigo.

-  E eu quero ser um grande ator, desses famosos, que a gente ouve nas rádio novelas, já comecei a me preparar para isso e preciso de sua  ajuda.

-  Eu? O que você quer?

- Quero que você toque violino durante minhas apresentações de teatro e cinema.  

   A música é muito importante para dar o clima romântico.

- Sua mãe,  não deve achar nada romântico você sujar todos os lençóis dela, para   fazer deles lona de  circo.

- O importante é que já temos um público infantil assistindo nossos trabalhos.       

   A casa está sempre cheia e o porquinho de moedas, cada vez mais pesado, com a  venda dos ingressos.

                   Era o prenúncio de carreiras artísticas, que estavam se evidenciando  ali, naquele pequeno canto do mundo. Nada podia impedir que os sonhos fossem semeados e se concretizassem no futuro.

                   Eduardo, filho de um motorista de praça, queria ser músico, um violinista famoso. Seu pai Jacob, ao contrário, queria que o filho  fosse mecânico, uma profissão muito conveniente para o pai, que teria alguém no futuro para consertar seu taxi. As  brigas  eram  inevitáveis,  surras  constantes,  puxões de orelha, gritaria e um inconformado moleque, obrigado a ser uma coisa que não queria e trabalhar na mecânica do Sr. Nicolau, um imigrante russo, amigo do seu pai, que abriu uma oficina, bem perto da casa do menino, no velho bairro paulistano, reduto da maior colônia eslava de São Paulo.

-  Que merda essa idéia de meu pai. Não quero ser mecânico!!! Quero ser

    músico!

                   Era chocante observar as mãos do menino encardidas de graxa, unhas repletas de sujeira, mas quando tocava violino, escondido do pai, conseguia superar essa visão encardida e transportar seus ouvintes a um mundo mágico que só a música consegue – a viagem dos  sonhos pelo imaginário.  

                   Eduardo ficava inconformado com a exigência paterna e não conseguia entender porque os pais, de uma forma geral, escolhem as profissões futuras de seus filhos, numa incoerência desumana; mas como toda regra tem uma exceção,  o menino tinha uma grande aliada, Eugênia, sua mãe, que em segredo partilhava dos sonhos e anseios do garoto e quando o pai saia para trabalhar com o táxi, ela dizia :

- Não fique triste meu filho, vou levar você no Conservatório do seu Giovanni.   Já falei com ele e está tudo arranjado. Você começa a estudar música, mas não  deve largar a mecânica do Seu Nicolau, porque senão seu pai desconfia. 

- Mas como vou pagar o Conservatório se ganho tão pouco na oficina? - Não se preocupe, deixe isso comigo, vou tentar uma bolsa de estudos

  para você. Hoje, o Seu Giovanni quer ouvi-lo tocar um pouco e depois ele resolve.

  Vamos que ele está esperando.

                   Eduardo, iniciou assim, uma longa carreira com o instrumento que ao cair em suas mãos, passou a fazer parte de sua vida – um velho violino, comprado com muito sacrifício pela mãe.

                   O professor, dono do conservatório ficou deslumbrado com o talento do menino e resolveu conceder-lhe uma bolsa de estudos, gratuita e não se arrependeu, pois Eduardo, ao longo de muitos anos de estudo, se transformou num grande violinista (spalla -primeiro violino) que as orquestras filarmônicas conheceram e chegou a se apresentar em inúmeras audições no mundo inteiro. Sua última apresentação no exterior foi na Rússia, no Teatro de Moscou. Nicolau perdeu um mecânico, mas o mundo ganhou um violinista de renome.

                   Ivan visitava sempre o amigo e o incentivava a tocar. Gostava de ouvi-lo  e o que mais o encantava eram as famosas músicas ciganas que no violino (um instrumento mágico) transportava a um passado distante, nas velhas estepes russas, onde os ciganos tocavam, cantavam e dançavam ao som de velhas canções.

- Nossa, Eduardo, você toca tão bonito que fico arrepiado. A música cigana faz  lembrar as histórias que minha mãe  contava de seus antepassados russos e de  seu pai Antônio,  velho cigano, que cantava naqueles carroções errantes que percorriam as velhas estepes russas. Meu avô era um artista nômade e eu quero  seguir o mesmo caminho dele. Tá no sangue!

                   Aos nove anos de idade, os dois meninos  se separaram, porque Ivan e sua família mudaram para o bairro da Cidade Dutra, em Interlagos, onde seu padrasto Alexandre comprou uma casa e depois disso, nunca mais se reencontraram.

                   Era atrás dessas recordações que Ivan procurava o amigo Eduardo, agora separado pelo tempo, distante e muito difícil de ser encontrado. Onde estaria o amigo? Que país o acolhera para ouvi-lo tocar? O tempo é implacável e não permite que as pessoas se encontrem a não ser por alguma coincidência do destino.

- Por que  não começa a procura pelo seu antigo endereço? Indagou a esposa  tentando ajudá-lo.

- Já estive lá e  nada adiantou, o pai dele morreu e o resto da família mudou e  ninguém sabe de nada.      

-  Mas Ivan, você não deve desistir, porque quem procura acha. Você disse que ele  estava tocando na Filarmônica do Estado, então, vamos  assistir as audições dessa  orquestra e quem sabe, vamos acabar achando.

- E eu já não pensei nisso? Até e-mails mandei para os maestros e músicos, mas eles    ignoram minhas mensagens.

                   Ivan sabia que era um capricho inútil, esse desejo  de voltar as origens e reencontrar o amigo  perdido no tempo.

- Não vou perder as esperanças, algum dia encontro o Eduardo, da mesma maneira que encontrei o Marisbel, lembra dele?

- Claro que lembro quando ligou, dizendo que era o Ivan, amigo que não o via há mais de trinta anos. E o pobre homem ficou muito assustado.

                   Marisbel, era um velho amigo de infância, conviveram muitos anos jogando futebol na várzea, onde se consagraram como goleiros amadores. Marisbel não tentou se profissionalizar nesse esporte, pois resolveu estudar e se formou economista, trabalhando até aposentar num banco estatal paulistano. Curiosamente, seu filho, foi goleiro júnior do São Paulo Futebol Clube. Outros amigos também levaram grandes sustos, quando recebiam telefonemas de Ivan, após 30 ou 40 anos de ausência, para dizer apenas “alô”, ou “como você vai? Ligações saudosistas  quase cinqüentenárias .

                   Eduardo continuava sendo uma exceção. Estava difícil encontrá-lo e a busca continuava. Onde estaria aquele menino assustado, que apanhava do pai, só porque gostava de tocar violino?  Pelo menos, parece que o pai se arrependeu   no dia em que assistiu pela primeira vez o filho tocando numa orquestra, mas o destino costuma pregar peças inexplicáveis.

                   Um dia,  numa última tentativa, Ivan acessou o site da Ordem dos Músicos do Brasil, enviando um e-mail. A resposta não se fez tardar, caiu como uma bomba!

- Meu Deus!  Ele morreu! Morreu afogado numa praia de Santos, aqui tão perto!

  Segundo informações, não oficiais, no início de 1997, a orquestra veio tocar aqui  no litoral e ele aproveitou uma folga, para passear na praia e acabou morrendo  afogado.

- Meu Deus! Que coisa terrível!

                   Ivan, olhou para o vazio do espaço e uma lágrima teimosa de saudade correu pelo seu rosto cansado. A esposa compreendeu sua dor e o abraçou em silêncio e ficaram assim por alguns momentos, numa muda homenagem  ao músico, que certamente, naquele momento,  estava tocando violino nas hostes celestiais.

                   O curioso de toda esta história é que Ivan procurou pelo amigo nos quatro cantos do mundo, através da Internet, sem saber que ele estava numa cidade  bem próxima do lugar onde Ivan  morava (São Vicente) e que se estivesse vivo, certamente seria encontrado.

                   Agora não resta mais nada, já não será possível ouvir as lindas canções ciganas no violino mágico, que emudeceu com a morte do menino, ficando o instrumento abandonado, triste e solitário, num canto qualquer. Seu dono partiu para o andar superior, atendendo a um chamado do Maestro Divino, para tocar na Filarmônica Celeste – o toque lindo e mavioso de um violinista eterno.

- Eduardo Szwec, meu querido amigo de infância, cúmplice de nossas travessuras infantis, descanse em paz e tenha certeza que um dia nos reencontraremos e voltarei a ouvir seu violino mágico...

 Aqui fica registrada essa singela homenagem desse seu amigo... João (Ivan) Matvichuc.

Nota do autor: É com muita emoção que presto esse preito de saudade a Eduardo Szwec, meu amigo de infância. Foi impossível conter as lágrimas, ao saber de sua morte, assim tão trágica, mas devemos nos conformar com os desígnios de Deus!

Aproveito também para agradecer ao Sr. Ronaldo da Silva Gutierrez, da Ordem dos Músicos do Brasil, pelas informações dadas, sem as quais, esse conto não existiria.

(Conto publicado na VIII Antologia Internacional Palavras no Terceiro Milênio – Phoenix Editora de São Paulo – páginas 92 a 97).

 

 

 

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