(conto)
Fátima Queiroz
A televisão é um veículo poderosíssimo,
que penetra
em nossa
casa influenciando
não apenas as pessoas, mas também, curiosamente, os animais. Vejam por exemplo,
o que aconteceu
com o
cachorro da
minha vizinha,
Aline.
Freddy, era um simpático
vira-lata, de cor preta desbotada, que com seu olhar doce e suas malandrices,
conquistou os moradores do prédio em que vivíamos. A única coisa que fazia
parar suas "traquinagens" era assistir televisão, _selfmente no
horário da mini-série "Presença de Anita". E o que mais o fascinava
era a música " Ne me quitte pas ", do compositor francês Jacques
Brel, na voz rouca e sedutora de Maysa. Ai ele se estendia no chão, com a cabeçinha
apoiada em uma das patas e ficava hipnotizado, talvez se identificando
com o rosnado da pronúncia francesa,
crescendo com
o charme
da canção.
Pouco a pouco, seu comportamento foi se modificando. De
comportado, tornou-se um cão irrequieto, invasor contumaz de apartamentos,
sempre à
procura de uma
lata de
lixo para
revirar.
Gostava de fazer suas visitas a um determinado apartamento, onde
residia Lilica, uma avantajada
"lady" do tipo "poodle" afrancesada, de cor num
tom preto brilhoso, pelos macios
como veludo, sempre escovados, sofisticada, nascida
em berço
de ouro e que simplesmente ignorava a presença insinuante de Freddy,
para ela um vira-lata sem eira, nem beira,
nascido ninguém sabe onde,
fruto de
uma ninhada
de quase
uma dezena
de filhotes.
Um cão
mal cheiroso,
que passou
a ser
chamado de
"Fede", por motivos
óbvios, vivendo infeliz pelos cantos sem
nenhum trapinho, que
lhe cobrisse
o tão
maltratado pêlo.
Lilica, por outro lado, estava sempre elegante no seu casaquinho
de veludo azul, bordado com flores róseas e sempre cheirosa exalando
"shampoo" importado.
Freddy, entretanto, permanecia impassível na sua obstinação em
lhe fazer a corte e as invasões tornaram-se freqüentes. Estavam se tornando
corriqueiros seus
resgates, no apartamento
de Dona
Domenique, jovem
viúva francesa, uma bela
mulher quarentona, sempre chique e elegantíssima,
provocando suspiros até no mais gélido dos homens e que desde a morte
de seu saudoso Jacques, vivia apenas na companhia de sua querida Lilica.
Cuidava de sua
cadelinha com o amor e o carinho
que se dá a uma filha e não via com bons olhos os arroubos sentimentais do
vira-lata. Não gostava de sua impertinência, pois, rotineiramente, aproveitava
a chegada do entregador de "pizzas", passando sorrateiramente entre
suas pernas e se escondia embaixo de sua poltrona, onde ficava flertando com a
mimosa Lilica e era muito difícil tirá-lo dali, a não ser puxando
energicamente seu comprido rabo (que ficava exposto), e o arrastando para fora,
deixando as marcas de suas unhas no lustroso carpete de madeira... terminando
assim o assédio sexual do infeliz Romeu e o devolvendo às suas origens
de um pobre vira-lata, que um dia ousou sonhar um futuro
emergente, na tão almejada
alta sociedade
canina. Tentativa
frustada de
quem sonha
com os
olhos abertos.
Havia no prédio outra concorrente, uma cadelinha, também
"poodle" pequenina, de
nome Malú,
que morria de amores por Freddy,
que simplesmente ignorava sua presença. Christiane,
sua dona, jovem morena
cor de jambo, formosa, extrovertida, se dividia entre o "Rap" e
o "Pagode". Gostava
muito de
cantar e
era comum
se ouvir por
todo o prédio o som alegre de sua voz.
Às vezes, em
seu apartamento
haviam animadas festinhas e o som marcante do "Rap" e do
"Pagode" corria solto e as pessoas dançavam curtindo os últimos
sucessos. A cadelinha Malú adorava ouvir essas músicas e se agitava com o
ambiente festivo,
procurando um
lenitivo para
o amor frustado.
Estava assim formado o triângulo dos amores não correspondidos.
Malú amava Freddy, que
amava Lilica,
que o
desprezava. Este,
por sua vez, fazia questão
de ignorar a "mignon" e "branquela"
Malú. Gemidos, mágoas e muitos sofrimentos expressados em doloridos e
insuportáveis ganidos se faziam ouvir, irritando os moradores do velho edifício.
Mas o clímax acontecia no horário em que a televisão exibia "Presença
de Anita", que aos olhos do romântico Freddy, se transformava em
"Presença de Lilica." E agitado, latia marcando com o rabo o compasso
da música "Ne me quitte pas", até alguém lhe dar um safanão e ele
sair ganindo de dor, ficando afastado, bem encolhidinho, sonhando com sua Lilica
e pensando na falta de sensibilidade das pessoas, que não compreendiam a sua
dor de amor. Mas, o destino, de uma forma quase trágica, quase terminou com
esse idílio canino.
Freddy, desgostoso com a rejeição de Lilica e não agüentando tanta
humilhação, resolveu
fugir e
aproveitando o descuido de
um dos moradores, que
deixou o
porta _self
aberta, escapou e ganhou
as ruas do bairro, à
procura de aventuras, que o fizessem esquecer o doloroso amor. Sua falta de
experiência com o trânsito local, acabou ocasionado seu
atropelamento, por um carro,
que passava em alta velocidade em
frente ao prédio. Sua aventura terminou de forma abrupta em cima de uma maca
hospitalar, no consultório do Dr. Onofre, velho médico veterinário, com longa
experiência em atropelamentos caninos.
- "
É, meu amigo, você escapou de uma
boa. Felizmente não apresenta nenhuma fratura.
Há apenas algumas escoriações, nada de grave".
Disse o velho doutor examinando a patinha de Freddy, que insistia
em valorizar o ferimento,
com um olhar infeliz de pobre coitado e com as patas dobradas, como se
estivessem quebradas, tentando comover o doutor.
O retorno foi uma festa. Deram-lhe as boas vindas, com um belo e
cheiroso banho, com "shampoo". Afinal, as coisas não são tão trágicas,
como parecem.
A mini-série " Presença de Anita" terminou,
a sofisticada Lilica foi passar umas férias com a sua dona na França e
a sua ausência fez com que Freddy a esquecesse e passasse a prestar mais atenção
na branquinha e ingênua Malú, que afinal era bem "jeitosinha" para
os padrões caninos. Freddy então,
trocou o romantismo da música francesa pelo balanço de um "Rap" e
"Pagode" brasileiros, que ele ouve no "apê" da cadelinha, a
brasileiríssima Malú, entre
afagos e lambidas. Afinal, temos que valorizar as
nossas coisas, pois elas fazem parte de nossa cultura.
- Ah !
O amor tupiniquim
é lindo, até entre os animais...
Não é verdade, Freddy ?
(Publicado
na Coletânea de Poesia e Prosa "Letras do Novo Milênio" da Taba
Cultural Editora – Rio de Janeiro
– 2002 – Páginas 69 a 72).
-
(Publicado na Coletânea "Entrelinhas" – 2002 da ALPAS-XXI de Cruz
Alta - RS
Páginas 232 a 234).
- Conto
classificado em segundo
lugar para
futura publicação
pela Sociedade
Piracicabana de Proteção aos Animais.
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